Conselho Nacional de Cineclubes lança campanha pelos direitos do público
O Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros está lançando uma Campanha pelos Direitos do Público. A Campanha se baseia na Carta dos Direitos do Público, aprovada por 70 países membros da Federação Internacional de Cineclubes e referendada, em fevereiro último, na 1ª. Conferência Mundial de Cineclubismo, na Cidade do México
O público é o único segmento da cadeia produtiva do audiovisual que não está representado em nenhum órgão ou instância de decisão referente às políticas de comunicação ou cultura. É o único setor que não tem voz no processo de comunicação - que tem nele, justamente, sua sustentação e seus objetivos.
Assim, as normas – ou a ausência delas - que regulamentam a comunicação, delimitam a circulação dos bens culturais e controlam o acesso da população à cultura são fundamentalmente, determinadas por grandes grupos privados, com interesses particulares. E o público, que financia esse sistema, é tratado apenas como platéia passiva, como espectadores submissos, meros consumidores desprovidos de interesses e inteligência, simples objetos e nunca sujeitos do processo de comunicação.
A imprecisão legal do conceito de direito de autor – e seu conseqüente uso indevido- , o abuso de chicanas legais para impedir a livre circulação de produtos audiovisuais, o não cumprimento de compromissos previstos em programas de fomento da produção e distribuição audiovisual, a ausência de garantias ao usufruto da produção e à expressão equitativa dos diferentes públicos, a falta de programas de sustentação de organismos de representação do público e a inexistência de sua participação na imensa maioria dos órgãos públicos de comunicação e cultura – enfim a ausência de um corpo jurídico e político que reconheça, estabeleça e garanta os direitos do público fazem com que o processo cultural, no Brasil, esteja sob controle de grandes corporações de comunicação, voltadas unicamente para a obtenção de lucro e sem consideração pelos interesses e direitos do público.
No mundo contemporâneo, o público compreende praticamente o conjunto da população. No plano da criação, produção, distribuição e usufruto dos produtos audiovisuais, o público é hoje representado pelos cineclubes e suas entidades representativas regionais, nacionais e internacionais.
Desde seu surgimento, no início do século 20, os cineclubes foram as únicas instituições a advertir sobre o mal uso do instrumento cinematográfico e que, desde logo, atuaram no sentido de organizar o público. E, há cerca de 90 anos, vêm construindo uma experiência única de inclusão e representatividade, integrando, representando, confundindo-se com o público.
A Carta dos Direitos do Público sintetiza, em grandes linhas, os próximos passos que o movimento cineclubista, junto com todos os setores autônomos do audiovisual brasileiro, com o conjunto da sociedade civil e com o apoio do Legislativo, deve dar no sentido de definir e fazer aprovar uma legislação dos Direitos do Público.
Carta dos Direitos do Público
ou "Carta de Tabor"
A Federação Internacional de Cineclubes (FICC), organização de defesa e desenvolvimento do cinema como meio cultural, presente em 75 países, é também a associação mais adequada para a organização do público receptor dos bens culturais audiovisuais.
Consciente das profundas mudanças no campo audiovisual, que geram uma desumanização total da comunicação, a Federação Internacional de Cineclubes, a partir de seu congresso realizado em Tabor (República Tcheca), aprovou por unanimidade uma Carta dos Direitos do Público:
1. Toda pessoa tem direito a receber todas as informações e comunicações audiovisuais. Para tanto deve possuir os meios para expressar-se e tornar públicos seus próprios juízos e opiniões.
Não pode haver humanização sem uma verdadeira comunicação.
2. O direito à arte, ao enriquecimento cultural e à capacidade de comunicação, fontes de toda transformação cultural e social, são direitos inalienáveis.
Constituem a garantia de uma verdadeira compreensão entre os povos, a única via para evitar a guerra.
3. A formação do público é a condição fundamental, inclusive para os autores, para a criação de obras de qualidade. Só ela permite a expressão do indivíduo e da comunidade social.
4. Os direitos do público correspondem às aspirações e possibilidades de um desenvolvimento geral das faculdades criativas. As novas tecnologias devem ser utilizadas com este fim e não para a alienação dos espectadores.
5. Os espectadores têm o direito de organizar-se de maneira autônoma para a defesa de seus interesses. Com o fim de alcançar este objetivo, e de sensibilizar o maior número de pessoas para as novas formas de expressão audiovisual, as associações de espectadores devem poder dispor de estruturas e meios postos à sua disposição pelas instituições públicas.
6. As associações de espectadores têm direito de estar associadas à gestão e de participar na nomeação de responsáveis pelos organismos públicos de produção e distribuição de espetáculos, assim como dos meios de informação públicos.
7. Público, autores e obras não podem ser utilizados, sem seu consentimento, para fins políticos, comerciais ou outros. Em casos de instrumentalização ou abuso, as organizações de espectadores terão direito de exigir retificações públicas e indenizações.
8. O público tem direito a uma informação correta. Por isso, repele qualquer tipo de censura ou manipulação, e se organizará para fazer respeitar, em todos os meios de comunicação, a pluralidade de opiniões como expressão do respeito aos interesses do público e a seu enriquecimento cultural.
9. Diante da universalização da difusão informativa e do espetáculo, as organizações do público se unirão e trabalharão conjuntamente no plano internacional.
10. As associações de espectadores reivindicam a organização de pesquisas sobre as necessidades e evolução cultural do público. No sentido contrário, opõem-se aos estudos com objetivos mercantis, tais como pesquisas de índices de audiência e aceitação
Tabor, 18 de setembro de 1987
Para maiores informações, acesse CNC LANÇA CAMPANHA PELOS DIREITOS DO PÚBLICO
Sobre a Carta dos Direitos do Público
Por uma campanha nacional em defesa do acesso ao conhecimento e à cultura e pela livre circulação dos bens culturais
Introdução
O movimento cineclubista experimentou um esvaziamento, em todo o mundo, durante os últimos anos do século passado, coincidindo com os momentos mais importantes da onda de expansão do liberalismo, do primado da iniciativa individual, da privatização das atividades culturais, sob o amplo guarda-chuva conceitual da "globalização".
Tavez por isso, iniciativas das entidades mais gerais dos cineclubes, como a Federação Internacional de Cineclubes (FICC) ou o Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC) não tenham prosperado e mesmo regredido em alguns casos
De certa forma, o mesmo aconteceu, de maneira bastante generalizada, com muitas outras organizações e movimentos políticos, sociais e culturais, por toda parte e nos setores os mais diversos.
A 1ª Conferência Mundial de Cineclubismo, realizada na Cidade do México no final de fevereiro de 2008, recuperou e endossou unanimemente a Carta de Tabor dos Direitos do Público, um verdadeiro manifesto e um esboço de programa de defesa do público e de luta pelo reconhecimento de seus direitos e das entidades que os representam.
No campo da comunicação audiovisual o público é representado pelos cineclubes e suas entidades representativas regionais, nacionais e internacionais.
Aprovada em 1987, quando apenas se reconheciam os grandes traços da transformação de paradigmas de comunicação e informação, assim como da generalização em escala inédita dos meios e produtos audiovisuais, a Carta de Tabor mantém-se absolutamente atual e, mais que isso, urgente.
Proletarização do público
"A linha divisória entre os homens não se acha exclusivamente entre os que possuem e os que não possuem mas, cada vez mais, entre quem tem possibilidade de aceder ao saber e quem está marginalizado do conhecimento. Por outro lado, sabemos que o saber e o conhecimento, cada vez mais, ao nível da maioria da população, se alcançam através dos meios audiovisuais de transmissão e comunicação eletrônica. Se além disso, observamos a grande exploração do consumo audiovisual com fins práticos e a conseqüente miséria intelectual e cultural, perceberemos que estamos diante do fato inédito de um proletariado dos meios de comunicação
Em outras palavras, nunca os meios e produtos de comunicação audiovisual – da televisão ao cinema, dos DVDs aos celulares – tiveram uma tal disseminação em todo o mundo. Por outro lado, especialmente nos países "em vias de desenvolvimento" ou mesmo "emergentes", o acesso à qualidade e à pluralidade das formas de comunicação e expressão do conhecimento e da arte estão cada vez mais restritas e sendo restringidas pela privatização e controle da circulação das obras de arte e dos bens culturais. Diante de uma incrível diminuição de distâncias de comunicação e de uma inédita diversificação de meios e produtos culturais, cada vez mais a "otimização" de segmentos de mercado, o controle dos "direitos de propriedade intelectual" e, enfim, os preços absolutamente abusivos, relegam a quase totalidade das populações de países como o nosso à periferia do conhecimento e da cultura universais, a uma posição colonial diante da circulação da cultura, a uma proletarização no acesso à comunicação, à cultura, à cidadania.
Quem representa o público
Desde seu surgimento, no início do século 20, foram os cineclubes os únicos a advertir sobre o mal uso do instrumento cinematográfico e que, desde logo, atuaram no sentido de organizar o público. "Evidentemente, a questão do público se coloca hoje de maneira diversa e bem mais aguda do que quando o consumo da literatura, da arte, do teatro ou da música envolviam setores extremamente restritos da população. A explosão científica e técnica dos últimos anos afetou poderosamente os meios de transmissão e, portanto, ampliou enormemente os consumos de idéias e emoções"
Há cerca de 90 anos, os cineclubes trabalham com o público, confundem-se com o público, construindo uma experiência única de inclusão e representatividade porque "cremos que o público deve ser considerado como tal, e não ser visto como incapaz de autonomia e liberdade, destinado portanto a assumir e aceitar o papel de consumidor passivo, mudo, que apenas assimila tudo o que se lhe oferece das mais diversas maneiras. Depois, esse consumidor é consumido pelos mesmos meios de comunicação: porque paga como assinante de televisão; paga como espectador na bilheteria do cinema; paga ao comprar o jornal; paga os produtos que a publicidade, infiltrando-se com uma freqüência vertiginosa e absolutamente intolerável nas transmissões televisivas, lhe propõe e impõe... Mas nós não queremos consumidores de comunicação, queremos um público sujeito ativo, consciente, responsável, capaz não apenas de propor – porque deve propor – mas igualmente conhecedor de seus próprios direitos que, para nós, são inalienáveis e essenciais, para que o cidadão cresça e possa alcançar os níveis do autogoverno."
Pela defesa dos direitos do público, do acesso à cultura e da livre circulação dos bens culturais
A degradação do conceito de direito autoral, inalienável, em direito de propriedade manipulado por corporações de porte planetário, expõe em todo o mundo a fragilidade de direitos fundamentais do público, consagrados nos maiores textos constitucionais.
De fato, essas corporações se apropriam indevidamente das obras e produtos do conhecimento e das artes, não apenas restringindo economicamente seu acesso a uma pequena "elite", mas ativamente reprimindo iniciativas culturais e educativas sem finalidades lucrativas.
Os direitos do público não se restringem, contudo, ao livre acesso à informação e à cultura, mas incluem o direito de responder, de participar e de intervir no processo de comunicação, individualmente e através das entidades que representam seus interesses, "porque se continuássemos apenas a escutar, sem usar esses instrumentos para nos expressarmos, perderíamos a capacidade de comunicação entre os homens, que forma a própria substância do ser humano".
A questão dos direitos do público tornou-se urgente e inadiável. As enormes transformações que estão ocorrendo nos meios de comunicação e nas formas de circulação, de intercâmbio da cultura da humanidade, exigem o estabelecimento de normas que assegurem o direitos de todos e de cada um.
Por isso a Carta dos Direitos do Público, tomada de posição inicial, no campo do audiovisual, para uma ampla mobilização civil em prol da definição clara inequívoca dos direitos da população que deve e exige participar, ativa e conscientemente, do processo de comunicação entre as pessoas, regiões, povos e culturas.
O Conselho Nacional dos Cineclubes Brasileiros conclama as forças vivas do audiovisual brasileiro, do governo e da sociedade, e em especial nossos representantes no Congresso, para essa fundamental e digna batalha.
Nós somos o público!
1 No Brasil, a Carta de Curitiba (1974) consolida o compromisso do cineclubismo com o cinema brasileiro, "enquanto intérprete da vida brasileira aos níveis de divertimento, de análise e de informação". No âmbito internacional, foi em 1976, na Assembléia Geral da Federação Internacional de Cineclubes, em Potsdam (RDA), que a delegação italiana propôs como tema central a questão do público.
2 A legislação sobre os cineclubes, no Brasil – em especial a Lei 5536/68 - caiu numa espécie de "esquecimento" com a promulgação da nova Constituição, em 1988. Na prática, governos e magistratura a ignoram desde então.
3 Fabio Masala, Una Carta Internacional para los Derechos de um Publico Nuevo, comunicação ao 3º. Congresso de Cineclubes do Estado Espanhol, Ed. Federació Catalana de Cine-Clubs,1992
4 Idem, ibidem
5 Filippo M. De Sanctis, Per uma riccerca-transformazione con el publico dei mídia, in Masala F., Publico e comunicazione audiovisiva, Roma, Bulzoni, 1986.
6 Declaração Universal dos Direitos Humanos – Art. 27 – Todo homem tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de fruir de seus benefícios. – Constituição da República Federativa do Brasil – Art. 215 – O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
7 Exemplo recente é notório é o do Cineclube Falcatrua, atividade de extensão universitária, exercida no recinto da Universidade Federal do Espírito Santo sem cobrança de qualquer taxa, processado pela exibição de dois filmes disponibilizados publicamente pelos seus autores/realizadores. Em todo o Brasil, cineclubes, prefeituras, até cidadãos privados recebem notificações e ameaças quanto à exibição de obras audiovisuais sem intuito de lucro – contradizendo diretamente o art. 184 do Código Penal.
8 Ricardo Napolitano, presidente da Federazione Italiana dei Circoli di Cine, intervenção na discussão pública da Carta dos Direitos do Público, em Roma, 1988, com a participação de representantes da Comunidade Econômica Européia, do Parlamento Europeu e do Conselho da Europa, além de forças política e culturais italianas. Fonte: http://cineclubes.org.br/tiki/tiki-read_article.php?articleId=271